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EFEITOS DA EXPOSIÇÃO CRÔNICA AO MERCÚRIO EM CIRCULAÇÕES ESPECIAIS

Submetido em 22 Dezembro 2016

Resumo

Já está bem demonstrado que a exposição ao mercúrio, seja ele orgânico ou inorgânico, é um fator de risco cardiovascular. A exposição crônica ao mercúrio é considerada fator de risco para o desenvolvimento de diferentes tipos de doenças e, mais recentemente, foi observado o importante efeito deletério que este tipo de exposição provoca no sistema vascular. Neste trabalho serão discutidos os efeitos sobre os leitos vasculares coronariano, cerebral e mesentérico superior. A exposição durante 30 dias ao HgCl2 promove disfunção endotelial em artérias coronárias, evidenciado por redução da biodisponibilidade de NO relacionado ao aumento do estresse oxidativo. Em artérias cerebrais, o mesmo modelo de exposição à baixa concentração de mercúrio leva a uma redução do relaxamento a BK e aumento da contração a 5-HT, também por redução da biodisponibilidade de NO. A exposição ao metal participa do desenvolvimento de vasoespasmos em artérias basilares. Além das alterações na atividade vasoconstrictora e vasodilatadora induzida por fármacos, o tratamento com mercúrio também aumenta a resposta vasoconstrictora à estimulação elétrica. E que essa alteração se deve a modificações na modulação nitrérgica e adrenérgica em artérias mesentéricas superiores, por redução da liberação e biodisponibilidade de NO via nNOS e aumento da liberação de ânion superóxido e noradrenalina. A exposição ocupacional ou ambiental ao mercúrio é um importante fator de risco para doenças cardiovasculares, como hipertensão arterial, infarto agudo do miocárdio e acidente vascular encefálico.

Introdução

 

O mercúrio é um contaminante que afeta a saúde humana e ambiental.1 Os efeitos à saúde humana dependem de sua forma química, já que as fontes de exposição, os órgãos alvo, a toxicidade e o metabolismo diferem muito entre elas.2

A exposição ocupacional ao mercúrio, normalmente, resulta da exposição ao mercúrio inorgânico e ao mercúrio elementar como vapor. Dentistas, técnicos de consultórios odontológicos, trabalhadores de indústrias de cloro e soda, mineiros, trabalhadores de indústrias de equipamentos de medição e de lâmpadas fluorescente são os principais indivíduos expostos.3-5

A concentração de vapor de mercúrio elementar considerada segura para inalação crônica pela OMS é de 0,2 µg/m3/Kg/dia. A concentração não deve exceder 1 µg/m3 no ar ano.6

A exposição ao mercúrio orgânico ocorre, basicamente, pela ingestão de peixes contaminados (metil-mercúrio) e pela exposição ao etilmercúrio contido em cosméticos e em vacinas contendo o conservante timerosal.7,8 O Brasil é um dos poucos países em desenvolvimento que ainda permitem e disponibilizam para a população vacinas contento timerosal.9 A exposição intrauterina e de crianças já se mostrou capaz de alterar o desenvolvimento neurológico.8

Em encontro realizado em 2010 (The Joint FAO/WHO Expert Committee on Food Additives) foi discutido que os efeitos benéficos do consumo de peixe para o neurodesenvolvimento infantil são reduzidos quando há contaminação pelo metilmercúrio).10

De acordo com a OMS, pessoas que consomem peixes e frutos do mar uma ou mais vezes por dia podem ter concentrações de mercúrio em cabelo alcançando até 10 µg/g. No entanto, em indivíduos que não consomem peixes habitualmente, as concentrações não podem exceder 1 a 2 µg/g.11 No Brasil, a recomendação do Ministério da Saúde é a ingesta de até 400g de pescado com concentração de 0,5 µg/g de mercúrio consumido por adulto semanalmente.12

Os casos de exposição ao mercúrio mais graves ocorreram no Iraque e em Minamata (Japão). Em Minamata, entre as décadas de 20 e 60, uma empresa japonesa especializada na produção de acetaldeído e PVC despejava metilmercúrio diretamente na baía da cidade. Estima-se que em quatro décadas foram despejados cerca de 150 toneladas de metilmercúrio na baía, levando à contaminação de peixe e à contaminação da população que comia esses peixes contaminados. No total, dois milhões de pessoas foram expostas, 900 pessoas morreram e 3000 pessoas sofreram a “Doença de Minamata”, que é caracterizada por convulsões severas, surtos de psicose, perda de consciência e coma.3,13

No Iraque, entre o fim da década de 60 e início da década de 70, outro caso de intoxicação populacional por mercúrio ocorreu. Grãos de soja e cevada foram tratados com fungicidas mercuriais e deveriam ser utilizados exclusivamente para plantio. No entanto, famílias utilizaram esses grãos para produção direta de pães e de outros alimentos. Após ingestão de mercúrio orgânico presente nos pães e outros alimentos produzidos com os grãos contaminados, 6900 pessoas foram hospitalizadas, 475 pessoas morreram e 15 crianças nasceram com anormalidades congênitas.14

No Brasil, a bacia amazônica é o local onde há maior contaminação por mercúrio. A preocupação decorrente da contaminação pelo metal surgiu na década de 80 pela grande quantidade de metal lançado no ambiente pelas atividades de garimpo iniciadas em 1979. A exposição populacional se dava pela inalação do vapor de mercúrio pelos garimpeiros e pelo consumo de peixes contaminados com metilmercúrio.15

O consumo de peixes contaminados com mercúrio é uma importante fonte de exposição na bacia amazônica. A população ribeirinha possui altas concentrações de mercúrio no cabelo, além de correlação positiva entre exposição ao mercúrio e pressão arterial sanguínea.16

O mercúrio elementar e seus compostos orgânicos e inorgânicos podem causar sérios danos aos diversos órgãos e tecidos do organismo humano, tanto após exposição aguda quanto crônica.17 No sistema renal, eles são responsáveis por lesão glomerular, injúria tubular, insuficiência renal e apoptose.18 No trato gastrointestinal, os compostos inorgânicos e o mercúrio metálico provocam estomatites, náuseas, vômitos, dores abdominais, anorexia, diarreias, colite, necrose da parede intestinal, hematêmese, salivação excessiva e até perda dos dentes.19,20

No sistema nervoso central (SNC) os efeitos mais frequentes da exposição ao mercúrio inorgânico são: irritabilidade, fadiga, mudanças comportamentais, tremores, cefaleia, perda auditiva e cognitiva, disartria, incoordenação motora e alucinações. A exposição ao metilmercúrio leva a alterações graves no desenvolvimento do SNC.20,21

A exposição crônica ao mercúrio é considerada fator de risco para o desenvolvimento de diferentes tipos de doenças e, mais recentemente, foi observado o importante efeito deletério que este tipo de exposição provoca no sistema vascular. Sendo assim, é necessário conhecer os efeitos, bem como os mecanismos de ação, do mercúrio sobre o sistema vascular. Neste trabalho serão discutidos os efeitos sobre os leitos vasculares coronariano, cerebral e mesentérico.

 

– Artérias coronárias

Wiggers e colaboradores (2008) desenvolveram um modelo experimental de exposição durante 30 dias ao HgCl2, no qual os ratos tratados alcançaram uma concentração igual a 7,97 ± 0,59 ng/ml.22 O valor de referência recomendado pela agência norte americana Enviromental Protection Agency de concentração sanguínea de mercúrio sem que haja efeitos adversos para a saúde é de 5,8 ng/mL ou ~ 21 nmol/L. A OMS estipula uma concentração menor que 6 µg/g de mercúrio como aceitável em cabelo de humanos.23

Furieri e colaboradores mostraram, pela primeira vez, os efeitos da exposição à baixa concentração de HgCl2 durante 30 dias, utilizando esse modelo experimental, sobre a reatividade de artérias coronárias de ratos. Mesmo em baixa concentração, o tratamento com mercúrio foi capaz de alterar o funcionamento desse importante leito vascular. As artérias coronárias apresentaram maior reatividade à serotonina e também déficit de relaxamento à acetilcolina. Os dados sugerem que esses efeitos observados se devem ao aumento da produção de radicais livres derivados do oxigênio, principalmente o ânion superóxido, ocasionando redução da biodisponibilidade de NO. E, ainda, por aumento da participação de prostanoides vasoconstrictores derivados da via do ácido araquidônico-ciclooxigenase.24

Confirmando os resultados encontrados na reatividade vascular coronariana, também foi encontrado que a produção local de NO em artérias coronárias septais está prejudicada, enquanto há um importante aumento da geração de ânion superóxido. A expressão gênica das duas principais isoformas geradoras de radicais livres da NADPHoxidase, a NOX-1 e NOX-4 está aumentada, sugerindo que essa é a principal fonte de produção de espécies reativas após exposição ao HgCl2. A expressão gênica da SOD-2, uma importante enzima responsável por transformar o ânion superóxido em H2O2 e oxigênio molecular, também está aumentada. Quando avaliada a morfologia dos vasos coronarianos, observou-se que o tratamento com HgCl2, além de alterar o funcionamento vascular e promover disfunção endotelial, ainda foi capaz de reduzir a área total do vaso e a área de seu lúmen.24

A fim de elucidar os mecanismos pelos quais ocorria a disfunção endotelial encontrada, também foram estudados os efeitos da exposição durante 24 horas ao HgCl2 em células endoteliais explantadas de coronárias suínas. E observou-se que nessas células expostas ao metal há maior produção de espécies reativas derivadas do oxigênio e que o aumento da produção é concentração dependente. Após exposição concomitante a alguns conhecidos antioxidantes, como tempol, apocinina e tiron, houve redução da produção de EROs, sugerindo que a principal fonte geradora desses radicais livres é a NADPHoxidase. Em células endoteliais, a maior produção de EROs também está relacionada à redução da produção de NO, como foi observado após medida de nitritos e nitratos, produtos da degradação de NO, em meio de cultivo celular. No entanto, a expressão proteica da principal sintase responsável pela produção de NO em células endoteliais, a eNOS, está aumentada em células endoteliais expostas ao HgCl2. Esse dado visto em conjunto com a redução da produção de EROs produzido pela incubação com L-NAME, inibidor não seletivo das NOS, demonstra que além do aumento da expressão da eNOS ser compensatório à redução de NO, também está contribuindo para a produção de radicais livres por desacoplamento da eNOS.24

 

– Artérias cerebrais

Wiggers e colaboradores (2016) utilizando o modelo animal experimental de exposição crônica a baixas concentrações de mercúrio que mimetiza a exposição humana a este metal, observaram, em artérias basilares de ratos, aumento da resposta contrátil a 5-HT e prejuízo na vasodilatação dependente do endotélio. Estes resultados sugerem que a exposição a este metal provoca disfunção endotelial.25

Além da disfunção endotelial, a redução da biodisponibilidade do óxido nítrico foi observada quando realizada curva concentração resposta a 5-HT na presença de L-NAME (inibidor da NOS). O L-NAME provocou menor aumento da resposta contrátil a 5-HT nas artérias dos ratos expostos ao mercúrio quando comparadas as artérias dos ratos não expostos ao metal caracterizando a redução da biodisponibilidade do óxido nítrico. Vale ressaltar que a exposição ao mercúrio não provocou alteração nas isoformas da SOD.25

Neste estudo também foi notado redução da resposta contrátil a 5-HT na presença do antioxidante Tiron e de Apocinina (inibidor da NADPH oxidase). Além disso, foi observada melhora da resposta vasodilatadora a Bradicinina na presença de Tiron e SOD. Na presença de indometacina ocorreu redução da resposta contrátil a 5-HT e melhora da resposta vasodilatadora a Bradicinina. Esses resultados sugerem envolvimento do aumento da produção de ânion superóxido e dos prostanoides derivados da via da ciclooxigenase no incremento da resposta contrátil a 5-HT e da piora da resposta vasodilatadora à Bradicinina. Isso indica que a disfunção endotelial provocada pela exposição crônica ao cloreto de mercúrio, neste leito vascular, está relacionada ao aumento da produção de espécies reativas do oxigênio e dos produtos derivados da via da COX e à redução da biodisponibilidade de óxido nítrico.25

 

– Efeitos sobre a inervação nitrérgica e adrenérgica em artérias mesentéricas

Diversos estudos de nosso grupo já haviam demonstrado, em muitos leitos vasculares, como a exposição crônica afeta a reatividade vascular. No entanto, ainda não havia na literatura descrição dos efeitos dessa exposição na inervação vascular. O tônus vascular é determinado por um equilíbrio na liberação de diversos neurotransmissores.26,27 As artérias mesestéricas possuem inervação nitrérgica, adrenérgica e peptidérgica, que participam no controle do tônus vascular em diferentes situações fisiopatológicas e podem ser avaliadas através da estimulação elétrica arterial.28-30

Blanco-Rivero et al (2011) mostraram que a exposição à baixa concentração de mercúrio aumenta a resposta vasoconstrictora à estimulação elétrica em artérias mesentéricas superiores, como resultado da liberação combinada de Noradrenalina, NO e CGRP (peptídio relacionado ao gene da calcitonina). Ao avaliar a participação da NA no aumento da vasoconstricção induzida pela estimulação elétrica, observou-se aumento da participação da inervação adrenérgica em artérias de ratos tratados, seja por aumento da liberação e/ou alteração da resposta das células musculares lisas vasculares a NA. Adicionalmente, há redução da participação da inervação nitrérgica, responsável pela liberação de NO via nNOS-fosforilada.31

Desta forma, podemos afirmar que além das alterações na reatividade vasoconstrictora e vasodilatadora induzida por fármacos, o tratamento com mercúrio também aumenta a resposta vasoconstrictora à estimulação elétrica. E que essa alteração se deve a modificações na modulação nitrérgica e adrenérgica. Há redução da liberação e biodisponibilidade de NO, provavelmente por redução da atividade da nNOS e aumento da liberação de ânion superóxido e aumento da liberação de NA.31

Os trabalhos de nosso grupo mostram, pela primeira vez, que a exposição à baixa concentração de HgCl2, próxima às encontradas em indivíduos que removeram amálgamas dentários, que foram expostos a vapor de mercúrio, ou que consomem rotineiramente peixes contaminados, foi capaz de causar disfunção endotelial em artérias coronárias e cerebrais. E, ainda, alteração na participação na inervação nitrérgica e adrenérgica em artérias mesentéricas superiores. Ou seja, a exposição a esse metal, rotineiramente encontrado no ambiente e por contaminação ocupacional é um importante fator de risco para doenças cardiovasculares, como hipertensão arterial, infarto agudo do miocárdio e acidente vascular encefálico.

 

Referências

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Autores

Lorena Barros Furieri1; Franck Maciel Peçanha2; Giulia Alessandra Wiggers3

1Doutora, Professora do Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.

2,3 Doutor, Professor da Universidade Federal do Pampa, Uruguaiana, RS, Brasil.

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