A exposição ao mercúrio é um fator pró-inflamatório e causador de estresse oxidativo. Um dos principais locais afetados pelo estresse oxidativo, por desenvolvimento de aterosclerose, é a aorta. Além disso, alterações na reatividade de artérias de resistência influenciam, em grande magnitude, a pressão arterial. Esse trabalho tem por objetivo mostrar os efeitos causados pelo mercúrio em baixas concentrações próximas às encontradas em indivíduos ambiental ou ocupacionalmente expostos, em artérias de condutância e resistência. Essas baixas concentrações de mercúrio, por 30 dias, ocasionaram aumento da reatividade vascular, do estresse oxidativo e da inflamação, além da redução da biodisponibilidade de NO tanto em artérias de resistência quanto de condutância. A exposição ao mercúrio tem importante efeito deletério na função vascular, principalmente por induzir disfunção endotelial e remodelamento vascular. Este impacto pode ser comparado aos produzidos pelos fatores tradicionais de risco cardiovascular como hipertensão, diabetes e hipercolesterolemia.
O mercúrio nas formas orgânica, inorgânica e elementar é utilizado em várias atividades humanas e isso faz com que o homem frequentemente seja exposto a este metal. Relatos dos efeitos tóxicos do mercúrio datam do século XIX, porém, somente após os desastres no Japão (Baía de Minamata) e Iraque nos anos 70 é que foi dada maior atenção a estes efeitos.1,2
O efeito tóxico deste metal está diretamente relacionado ao tipo, tempo e à via de exposição, sendo que a exposição humana frequentemente ocorre pelo consumo de peixe contaminado com mercúrio orgânico, administração de timerosal em vacinas e inalação de vapor de mercúrio das amálgamas dentais.3,4
Inicialmente, foi observado que o sistema nervoso central e o renal tinham suas funções afetadas pela exposição ao mercúrio, no entanto, nas últimas duas décadas também foram notadas alterações no sistema cardiovascular, dentre as quais se destacam a hipertensão arterial, aterosclerose em carótidas, doenças coronarianas e infarto agudo do miocárdio.5-9 O efeito tóxico do mercúrio sobre estes sistemas está relacionado à maior geração de espécies reativas do oxigênio.9-11
Em estudos experimentais, nosso grupo já documentou que a perfusão direta de artérias caudais de ratos com mercúrio produzia uma vasoconstricção associada a alterações na função endotelial. Essas alterações são evidenciadas pela redução do relaxamento dependente do endotélio mediada e pelo aumento da produção de prostanoides vasoconstrictores derivados da COX, aumento da produção de radicais livres com consequente redução da biodisponibilidade de NO.12 Nesse mesmo leito arterial, concentrações nanomolares de mercúrio já promoveram aumento da reatividade à fenilefrina por aumento da atividade da ECA e estimulação da Angiotensina II.13
Estudo realizado por Bastos e colaboradores com população ribeirinha da Amazônia demonstrou que a quase totalidade dos habitantes dos 40 municípios estudados possuem concentrações sanguíneas de mercúrio acima dos valores de referência, indicando que a exposição humana ao mercúrio é crônica e a baixas doses.14
Considerando que os humanos são expostos cronicamente ao mercúrio e que pouco se conhecia sobre o efeito deste metal sobre o sistema vascular, nosso grupo desenvolveu um modelo experimental em que o rato era exposto, durante 30 dias, a baixas doses de mercúrio mimetizando a exposição humana ao metal e permitindo que fosse avaliado o efeito tóxico do mercúrio sobre o sistema vascular.15
No modelo experimental de exposição crônica a baixas doses de mercúrio desenvolvido por Wiggers et al,15 foi observado que ao final do tratamento o animal apresentava concentração sanguínea de mercúrio de aproximadamente 8 ng/ml (29nmol/L), concentração esta semelhante à observada na população humana exposta a este metal.4,16,17 Nesse modelo de exposição não foi observada alteração dos níveis de pressão arterial sistólica, no entanto, houve aumento da atividade plasmática da enzima conversora da angiotensina (ECA). Com esse modelo experimental, pôde-se avaliar a função vascular de artérias de resistência e condutância.
– Efeitos em artérias de resistência
A resistência vascular periférica é inversamente proporcional ao raio do vaso à quarta potência e, portanto, diminuições no tamanho destas artérias podem produzir importantes aumentos na resistência periférica e, por conseguinte, aumento da pressão arterial.18 O diâmetro luminar é determinado pelas propriedades ativas e passivas do vaso. Ou seja, por suas alterações morfológicas e funcionais.19
Wiggers et al, mostraram que o tratamento com baixa concentração de mercúrio por 30 dias induz a disfunção endotelial em artérias mesentéricas de resistência, possivelmente pelo aumento do estresse oxidativo, redução da biodisponibilidade de NO e pelo aumento da produção de O2 •- derivada da NADPH oxidase. Dentre os principais resultados da avaliação funcional, destaca-se que a exposição crônica ao mercúrio provocou: 1) aumento da resposta vasoconstritora a fenilefrina e redução modulação endotelial do NO a esta resposta; 2) redução da resposta vasodilatadora dependente do endotélio induzida por ACh; 3) aumento da produção de ânion superóxido, malondialdeído plasmático e estado total antioxidante; 4) restauração da modulação endotelial do NO na resposta contrátil a fenilefrina e na vasodilatação induzida pela ACh na presença da SOD (scavenger do ânion superóxido) e da apocinina (inibidor da NADPH oxidase).15
Sabe-se que as alterações cardiovasculares, como hipertensão, além da presença de estresse oxidativo e disfunção endotelial, cursam com mudanças estruturais nos vasos de resistência, um processo conhecido como remodelamento vascular, geralmente associado a diminuições em seu diâmetro.20-23 O remodelamento vascular é um processo complexo que pode envolver um aumento (hipertrofia), diminuição (hipotrofia) ou rearranjo (eutrofia) do material da parede vascular.21,24 Na literatura não existia, até então, nenhuma evidência experimental de que o tratamento crônico com HgCl2 pudesse estar associado a alterações estruturais ou mecânicas de vasos de resistência. Estudo de nosso grupo avaliou, pela primeira vez, as propriedades estruturais e mecânicas de artérias mesentéricas de terceira ordem de ratos Controle e tratados com HgCl2, em sistema para artérias pressurizadas, o qual representa um dos métodos atuais mais apropriados para esse tipo de estudo por sua aproximação com as condições in vivo.25
O tratamento com mercúrio produziu uma redução da espessura da parede e na relação média: lúmem dos vasos, assim como um aumento do diâmetro interno, que poderia ser consequência da diminuição da espessura da parede vascular.15 Estes parâmetros correspondem à definição de remodelamento hipotrófico para fora.26
– Artérias de condutância
Sabe-se que a exposição ao mercúrio, como demonstrado em artérias de resistência e em outros sistemas biológicos, é um importante fator causador de estresse oxidativo e inflamação.9,11,15,27 O estresse oxidativo e a inflamação são importantes fatores geradores de colesterol LDL que, em artérias de condutância, levará a aterosclerose.28,29 Então, os efeitos em artérias de condutância, como a aorta, em conjunto com as alterações observadas em artérias de resistência são importantes focos de estudo da exposição ao metal, já que a disfunção endotelial em ambas se somam como fatores de risco cardiovascular.
Este mesmo modelo experimental foi utilizado para avaliar o efeito do mercúrio sobre as artérias de condutância e, para isso, foram desenvolvidos experimentos de reatividade vascular em segmentos da aorta torácica. Neste leito vascular, também foi observado que a exposição a baixas doses de mercúrio, durante 30 dias, provocou aumento da resposta contrátil à fenilefrina e menor participação do NO nesta resposta, redução da resposta vasodilatadora à acetilcolina, aumento da produção ânion superóxido e dos níveis de malondialdeído (MDA). Além disso, foi observado que na presença de apocinina (inibidor da NADPHoxidase) e SOD (“scavenger” de ânion superóxido) ocorreu melhora na modulação endotelial do NO na resposta contrátil à fenilefrina e incremento da resposta vasodilatadora à acetilcolina. Esses resultados sugerem que a exposição ao mercúrio promoveu disfunção endotelial que se deve, ainda que parcialmente, à redução da biodisponibilidade do NO, devido ao aumento da produção de espécies reativas de oxigênio pela NADPHoxidase.15
A participação da via da angiotensina II nas alterações vasculares provocadas pelo mercúrio já tinham sido observadas pelo nosso grupo.13 Posteriormente, outros autores, demonstraram que a angiotensina II era capaz de induzir a expressão de COX-2, aumentar a produção de prostanóides30,31 e que os prostanoides contráteis derivados da via da COX-2 provocavam disfunção endotelial.32-34 Para elucidar o papel da angiotensina II e dos prostanoides contráteis derivados da via da COX-2 na reatividade vascular de ratos expostos ao mercúrio, Peçanha et al, realizaram experimentos em segmentos de artéria aorta.
A hipótese de que a exposição ao mercúrio promove maior participação da via da angiotensina II na reatividade vascular foi reforçada porque em ratos expostos ao mercúrio foi observado: a) aumento da atividade da ECA no plasma; b) redução da resposta contrátil à fenilefrina na presença de Losartan (antagonista do receptor AT1). Além disso, a presença de indometacina (inibidor não seletivo da COX), NS 398 (inibidor da COX-2), SQ 29,548 (antagonista do receptor TP), furegrelato (inibidor do TXA2 sintase), SC 19,220 (antagonista do receptor EP1) reduziu a resposta contrátil à fenilefrina em segmentos de aorta de ratos expostos ao mercúrio e promoveu aumento da expressão gênica da COX-2 nas aortas destes animais. Esses resultados indicam a participação da via da angiotensina II e da via da COX-2, especialmente do TXA2 e da PGE2, nas alterações vasculares (reatividade vascular) provocadas pela contaminação com o mercúrio.35
Posteriormente, em estudo em que os ratos expostos cronicamente a baixas doses de mercúrio foram cotratados com apocinina (inibidor não específico da NADPHoxidase) foi demonstrado pela primeira vez que a apocinina, melhorou a função endotelial da aorta de ratos expostos cronicamente ao mercúrio.31 Este efeito se deve à prevenção do aumento do estresse oxidativo, redução da peroxidação lipídica, alterações de mecanismos de defesa e consequente melhora da biodisponibilidade do NO. Vale ressaltar que o tratamento com apocinina não reduziu a participação dos prostanoides derivados da COX-2 na resposta contrátil à fenilefrina. Esses resultados reforçam a hipótese de que a exposição crônica ao mercúrio promove maior participação destes prostanoides e das espécies reativas do oxigênio na resposta contrátil da aorta de ratos a fenilefrina. Além disso, indicam que o mercúrio atua por duas vias diferentes, vias da COX-2 e da NADPH oxidase, de forma independente.36
Estudo mais recente do nosso grupo mostrou que os efeitos da exposição ao mercúrio na reatividade vascular é concentração dependente. Já que a exposição à concentração 2,5 vezes maior que do modelo experimental proposto por Wiggers et al,15 causa aumento da reatividade vascular em aorta, mas a metade da concentração promove redução da resposta contrátil a fenilefrina. Essa redução, provavelmente se deve a um aumento na biodisponibilidade de NO, como reforçada pelos dados de expressão proteica da fração fosforilada da eNOS em segmentos de aorta.37
No entanto, quando o mercúrio (6nM) era adicionado diretamente no meio de perfusão de artérias aortas, observou-se que ainda assim houve aumento da reatividade a fenilefrina por aumento do estresse oxidativo e consequente redução da biodisponibilidade de NO.38 Essa concentração é muito menor do que a concentração plasmática alcançada pelo tratamento proposto por nosso grupo anteriormente (29nM ou 8ng/mL).15
Ou seja, os efeitos mostrados por Azevedo et al,37 foram surpreendentes, sugerindo que a exposição crônica e controlada de mercúrio a concentrações que não levam a disfunção endotelial promove respostas adaptativas e protetoras da vasculatura arterial.37
Estes resultados evidenciam os efeitos deletérios do mercúrio sobre o sistema vascular, ajudam a esclarecer os mecanismos pelos quais este metal exerce estes efeitos e já sugerem possíveis vias terapêuticas.
A exposição a baixas concentrações de mercúrio tem efeito negativo na função vascular, principalmente por induzir disfunção endotelial e remodelamento vascular. Este impacto pode ser comparado aos produzidos pelos fatores tradicionais de risco cardiovascular como hipertensão, diabetes e hipercolesterolemia. Portanto, o mercúrio pode ser considerado um importante fator de risco para doença cardiovascular, que pode participar do desenvolvimento de eventos cardio e cerebrovasculares. Ainda precisa ser mais bem estudado, se estes efeitos aumentam as consequências dos tradicionais fatores de risco ou se desempenham papel primário em pacientes com baixo risco cardiovascular.
38. Lemos NB, Angeli JK, Faria Tde O, Ribeiro Junior RF, Vassallo DV, Padilha AS, et al. Low mercury concentration produces vasoconstriction, decreases nitric oxide bioavailability and increases oxidative stress in rat conductance artery. PLoS One. 2012;7(11).
Lorena Barros Furieri1; Franck Maciel Peçanha2; Giulia Alessandra Wiggers3
1Doutora, Professora do Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.
2 Doutor, Professor da Universidade Federal do Pampa, Uruguaiana, RS, Brasil.